Já sei que ainda faltam mais de 6 meses para 2008. Mas eu já tenho o meu voto definido. Independentemente das cores clubísticas em causa, acho que ninguém deveria ficar sem ler o post que se segue.Nobre Povo
Mil vezes repetidos, há dogmas que penetram fundo na terra e ganham raízes. No futebol português, não há dogma mais martelado do que a natureza intrinsecamente popular do Benfica – o Benfica é o clube do povo, repete incessantemente a lengalenga. Se especularmos e levarmos o teorema para a expressão seguinte, o FC Porto é necessariamente o clube do clero. Há lá papas e coisas assim. Resta ao Sporting portanto o papel de clube da nobreza.Ora, eu não sei que livros leram os senhores que repetem, com orgulho, que o Benfica é o clube do povo, mas nos romances de cavalaria que tive oportunidade de consultar ser da nobreza é menos asfixiante do que ser do povo. Em primeiro lugar, saliento que o povo alomba forte e feio enquanto os nobres costumam tocar alaúde. Eu não tenho muita experiência, mas tenho impressão que nunca ninguém morreu a tocar alaúde. (Só se for de tendinite, que parece que dá de repente). Já quem alomba forte e feio não costuma chegar a velho.
Em segundo lugar, imagino que um servo da gleba não seria homem para realizar todos os seus sonhos – excepto se todos os seus sonhos passassem por domir na palha e levar com harpas na cabeça em intervalos regulares. Há muito boa gente que não quer mais nada da vida – estou a lembrar-me do Jorge Palma, por exemplo –, mas eu sou um bocadinho teimoso: julgo que continuo a preferir o alaúde.
Há também aquela questão mais chata das guerras, mas, mesmo aí, os nobres têm alguma vantagem. Para já, não vão a pé, mas sim com a padiola assente no lombo do cavalo, o que significa que o equídeo também alomba e portanto qualifica-se automaticamente para ser do povo (E do Benfica, acrescento).
E, nas batalhas, enquanto os nobres usam armas chiques como arcos e flechas, o povo é encafuado em áreas exíguas e entretém-se à marretada com coisas perfurantes. Não me levem a mal: cada um entretém-se como pode, mas escusa de salpicar as roupas dos outros com sangue e vísceras. E tenho ainda hoje como muito válido o conselho que a minha avó costumava dar: não brinques com facas que ainda vazas a vista a alguém!
Creio que a insistência dos pregadores do reino em lembrar que o Benfica é o clube do povo é um capricho parecido com o do meu miúdo que, na semana passada, viu um daqueles cuspidores de fogo ou engolidores de sabres na Rua Garrett, daqueles que tem fuligem da cara até aos chanatos e cujo cabelo emaranha para fora do lenço palestiniano que usa à cabeça. Pois o miúdo disse com convicção que aquela era a profissão que ele escolhia. Lá lhe expliquei que não, que um engolidor de sabres tem dificuldades em manter relações estáveis e tem imensas complicações fiscais, que um cuspidor de fogo gasta fortunas em petróleo e outros consumíveis e que, no fundo, aquilo que ele via à distância parecia mais promissor do que a realidade.É a mesma coisa com o dogma da dimensão popular do Benfica. Ser do povo até é giro. Mas experimentem desenvencilhar um sabre que se emaranhe no duodeno e depois venham cá falar.
in Mãos ao Ar, by Bulhão Pato